A crise é epidêmica

Disse o sábio Tom Zé: “Não há absolutamente nenhuma crise no governo. A crise mais importante é o completo fracasso de uma sociedade sem ética. Dela por inteiro.” (revista Carta Capital, 17 de agosto). E ponto final.

O grande resistente tropicalista, que não virou ministro nem autor de trilha de novela, é também autor de uma ótima música sobre esta cidade. Em “São, São Paulo” o jardineiro Tom Zé afirma (ainda em 1968):

“São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação”

Hoje são 10 milhões de habitantes, 5 milhões de carros comprados em até 4 anos e meio de parcelas com os maiores juros embutidos do mundo.

A solidão, o medo e a agressividade são generalizados. Cada vez mais a vida dos paulistanos é estacionar suas carruagens dentro de castelos da fantasia e consumir a tranquilidade que não existe do lado de fora.

A corrupção é regra social há 500 anos. A lógica que a alimenta é a mesma que alimenta a cultura do auomóvel: o individualismo, a alienação e o desrespeito aos limites entre público e privado.

Aí entra o apresentador do telejornal, que sorri aliviado e diz que a indústria automobilística exportou como nunca. Depois fala com tom grave e preocupado ao dizer que o petróleo bateu recordes de preço. A culpa é do terrorismo, da Venezuela, do Iraque.

Será que o petróleo é caro porque as reservas são poucas ou será que o mundo gasta demais e de forma errada? O preço do petróleo é de responsabilidade da cultura automobilista, consumista e predatória. A mesma cultura que se traveste de “democracia e liberdade” para abocanhar mais poços de petróleo ao redor do mundo e ampliar a rede de consumidores alienados.

No Brasil a cultura do automóvel continua com bons incentivos governamentais, matéria prima abundante, mão de obra barata e planejamento urbano voltado para saciar seu apetite por espaço. As montadoras vendem muito, pagam alguns impostos e enchem o bolso de um rico acionista londrino que anda de metrô ou de um rico acionista californiano que anda num SUV.

O dinheiro dos impostos que fica por aqui serve para pagar a dívida eterna, alimentar malas, cuecas, bolsos ou sentenças judiciais que garantem o saque ao que é público. Os que desfrutam de bons advogados ou possuem boas influências nas esferas de poder vivem muito bem, não importa o governo.

O cidadão comum é vítima e co-autor de aberrações urbanas e políticas deste país: o guardador de carros, o estacionamento irregular, a propina ao policial rodoviário, os despachantes macomunados com agentes públicos para aliviar multas, as empreiteiras que constroem túneis superfaturados a pedido de governantes, os donos de postos que alteram o combustível, o desrespeito ambiental, o valet park e a exclusão de grande parcela da população que vive em áreas sem transporte público decente. A crise é epidêmica.

Vale a pena dar uma olhada também na letra de “A volta do trem das 11“, também de Tom Zé, sobre o sucateamento das ferrovias brasileiras. Os comentários também trazem dicas interessantes.

Propaganda ou ameaça?

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“A era do ‘estou fora do escritório e não estou conectado’ já era”.

A era das máquinas que libertam o homem do trabalho também…

10 milhões de pessoas, 5 milhões de carros

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A única diferença da imagem acima para a cidade de São Paulo é que o habitat do paulistano é povoado de prédios, cercas, garagens e estacionamentos.

Aqui em São Paulo praças e espaços públicos de convivência são espécie rara. Por outro lado, as áreas privadas de lazer em condomínios verticais são absolutamente surreais. Prédios com pista de cooper, piscina, praças e quadras esportivas totalmente sub-utilizadas. Enquanto isso, quem não tem dinheiro para viver nos oasis privados, fica sem acesso aos espaços de lazer. Como disse Tom Jobim na entrevista encartada na Caros Amigos deste mês “a única obscenidade que eu conheço é muita gente junta”.

2005: 307 mortos em atropelamentos. E o ano não acabou.

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Saiu no Estadão desta quinta: só no primeiro semestre deste ano, 307 pessoas foram mortas em atropelamentos, uma média de 50 mortos por mês, ou 1,7 por dia. Isso para não contar os motoristas, motociclistas e ciclistas que perderam a vida em um “acidente”.

A reportagem do jornal acompanhou o Corpo de Bombeiros durante 24 horas: foram 33 chamados de resgate para vítimas de atropelamentos. Ou seja, um atendimento a cada 46 minutos. Isso sem contar as vítimas atendidas pelos próprios motoristas, viaturas de polícia e outros.

“O histórico é sempre o mesmo: ou o motorista passou no farol vermelho ou estava em alta velocidade e desrespeitou a faixa de pedestres”, disse o tenente Marcos das Neves Palumbo.

Além das vidas perdidas ou sequeladas, o custo em saúde pública é monstruoso. Mesmo assim, não vemos nenhum político, autoridade ou intelectual dizendo que o excesso de veículos é um problema para qualquer cidade.

No mais, continuo me perguntando: por que é lícito vender uma arma… ops, um automóvel que chega a 200km/h se o limite máximo de velocidade no país é de 120km/h? Por que as propagandas de automóveis não trazem avisos como as de cigarro: “carro mata, use com cuidado” ou então “carro provoca dependência, obesidade, poluição e stress”. Será que o custo em saúde pública é muito maior com as vítimas do cigarro do que com as vítimas dos automóveis, ou será que ninguém nunca fez essa conta?

Cartum de um iraniano chamado Khosro-Talebpour

Khosro-Talebpour

Cartum de um iraniano chamado Khosro-Talebpour

Do nada ao lugar nenhum: agora mais curta

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Segundo cálculos realizados através do Google Earth, a ciclovia da avenida Faria Lima ficou 283 metros mais curta desde o final de julho.

Como avisa a faixa acima, o trecho entre a rua Pe. Garcia Velho e o Largo da Batata foi desativado para dar lugar a pontos de ônibus. Esperto, o governo municipal aproveitou para fazer propaganda da linha 4 do Metrô (repare no canto esquerdo da faixa), que terá o primeiro trecho entregue só em 2011, mas já consta nos mapas oficiais desde a última eleição para governador. Isso se não houver mudança de planos, governos ou mesmo oscilações na bolsa de Hong Kong ou um aumento do risco país pelo J&P Morgan.

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Nada contra os pontos de ônibus. Pelo contrário: os terminais e corredores à esquerda criados no governo passado são ótimos. Se na próxima década estes terminais forem integrados à fictícia linha 4 do metrô, melhor ainda. E se tivermos bicicletários e uma tarifa de ônibus e metrô integrada e barata, estaremos na Suécia.

Mas não devemos lamentar a desativação da ciclovia, afinal ela nunca existiu. Assim como os outros 3,4 km… ops, 3,1km de ciclovias da cidade, a da Faria Lima também ligava o nada ao lugar nenhum. Agora ela termina um pouco antes, mas sua inutilidade permanece a mesma.

Irmãos do norte

Quem encontrou foi o vizinho trânsito: dois vídeos feitos pelo pessoal da Transportation Alternatives (ambos em Quicktime).

No primeiro, de 14 minutos, a luta da comunidade do Bronx contra os abusos cometidos pelos automóveis. Na região, os atropelamentos são uma das principais causas de morte entre crianças de 5 a 9 anos.

O segundo vídeo, de 6 minutos, mostra uma pedalada em homenagem aos ciclistas mortos nas ruas de Nova Iorque.

Armas de destruição em massa

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Vale lembrar: há 60 anos, o país que escolheu o automóvel e as armas de fogo como estilo de vida praticou o mais eficiente e rápido genocídio da história humana. Em 6 de agosto de 1945, a primeira bomba em Hiroshima matou na hora 70 mil civis; em Nagasaki, 3 dias depois, mais 40 mil mortos instantâneos. O número de vítimas reconhecidas oficialmente chegou a 220 mil.

“A imagem do Paraíso é simples: cada norte-americano tem um automóvel e uma arma de fogo”. (…) “Em cada 6 dólares que gasta o cidadão médio norte-americano, um é destinado ao automóvel; de cada seis horas de vida, o mesmo cidadão reserva um hora para viajar de carro ou então a trabalhar para pagar seu veículo; e de cada 6 empregos existentes no “paraíso”, um está direta ou indiretamente relacionado com a violência e as suas indústrias” afirma o uruguaio Eduardo Galeano.

Os EUA são o país do mundo com o maior arsenal de armas de destruição em massa e de uso “caseiro” (aquelas utilizadas por garotos de 15 anos para matar seus colegas em escolas secundárias). Para dar vazão à produção de armas, é necessário criar conflitos, ocupar países, instalar bases e auxiliar milícias ou bandos organizados ao redor do mundo. Na última aventura oficial, Texaco-Bush botou boa parte do arsenal na disputa pela região conhecida como Grande Poço de Petróleo do Mundo. 25 mil civis iraquianos foram mortos até agora, mas nenhum McDonalds foi aberto em Bagdá.

As máquinas da guerra são chamadas “armas”. As máquinas da sublime dominação cotidiana têm outros nomes: computadores, celulares, televisão, bolsas de valores, revista Veja, cotação do dólar, automóveis… Matam da mesma forma que as primeiras, às vezes de forma lenta e imperceptível, às vezes de forma instantânea como uma explosão atômica. As máquinas-automóveis, por exemplo, matam no Brasil 50 mil pessoas por ano, o dobro do número de civis mortos no Iraque em 2 anos de intervenção. Ou, se preferir, um quarto dos mortos de Hiroshima e Nagasaki.

Chamas de inverno

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“Fim de tarde no invernico paulistano” ou, se preferir, “imagem do por do sol com aquecimento global e poluição”.

Cidadania blindada

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Acima, spam recebido por um amigo.

No fim de semana, a Folha de São Paulo publicou a matéria “Frota de 25 mil blindados faz crescer oferta de usado no Brasil”. O presidente da Ass. Bras. de Blindagem declarou: “Hoje, é como banco de couro: é só ir até a concessionária e escolher”

Mais algumas pérolas possíveis apenas em um país que tem a segunda pior divisão de renda do mundo:
– “Como os mais ricos trocam de carro a cada 2 anos, o mercado de usados é sempre abastecido”
– “Muitos compradores optam por um usado para ser ou o primeiro blindado, ou o carro para fugir do rodízio”
– “A violência está assustadora. Depois do primeiro blindado, é difícil andar num carro convencional”