Quem fomos

Em 7 de março de 2005, um pequeno diálogo fictício entre pai e filho inaugurava este blog, ainda no endereço apocalipsemotorizado.blogspot.com. O texto antecipava um futuro inexorável (ainda que aparentemente distante), onde a sociedade do automóvel já teria sido superada.

Com alguns hiatos e outros momentos de maior efervescência, lá se vão mais de seis anos. Entre textos, pensamentos, desabafos, inspirações, vídeos, fotos e relatos, foram 1515 postagens.

O Apocalipse Motorizado teve seu título emprestado de um livro homônimo, usado como fonte primordial na pesquisa para o documentário Sociedade do Automóvel (meu trabalho de conclusão de curso em 2004).

Da mesma obra veio a inspiração para o pseudônimo utilizado nos textos: Luddista, alcunha que remete à Ned Ludd, figura mítica na Inglaterra do século XIX. Ned Ludd provavelmente não existiu de fato. Foi, possivelmente, uma criação do inconsciente coletivo, uma inspiração para muitos indivíduos que realizaram pequenas rebeliões contra a mecanização da produção fabril.

A inspiração luddita, obviamente, não foi literal. Dois séculos depois, é notório que as máquinas (carros incluídos) trouxeram muitos benefícios à humanidade. Mas o anti-futurismo de Ludd, assim como diversas teorias contemporâneas que defendem o o retorno radical à “vida simples”, não podem ser desprezados.

As máquinas trouxeram benefícios, mas é inegável que elas colocaram a humanidade e o planeta em uma situação quase sem retorno de colapso e degradação. O “desenvolvimento” tecnológico é uma bomba-relógio que explode a conta-gotas em nossas vidas, adocicada por analgésicos e entorpecentes que dificultam a nossa visão crítica e, consequentemente, a ação.

A locomoção motorizada particular nos aliena da possibilidade de ligação afetiva, racional ou espiritual com os outros seres e com o ambiente onde vivemos. Não é exagero afirmar que, cada vez mais, não somos nós quem controlamos as máquinas, mas sim o contrário.

O quadro fica mais grave quando consideramos que nenhuma tecnologia é neutra e que boa parte delas foi desenvolvida visando a acumulação de capital e o exercício do poder de uns sobre os outros.

O automóvel é um bem privado de uso exclusivamente público, que transfere da esfera teórica para as ruas os valores estabelecidos pelo poder. Ao longo de um século, ele condicionou nossas vidas e explicitou no espaço urbano a disputa pela acumulação (de status, dinheiro e poder) e o desperdício (de espaço, tempo e combustível). Ele não é o único responsável, mas talvez seja a expressão mais bem acabada destes valores.

O Apocalipse Motorizado surgiu a partir da descoberta pessoal de novas possibilidades, não apenas de locomoção, mas também de vida em sociedade. O blog cumpriu, ao longo dos anos, papel de inspiração, mobilização e questionamento de paradigmas auto-destrutivos que cultivamos no topo das escalas de valores sociais.

Este blog nunca foi “sobre bicicletas”, muito menos um blog “cicloativista”. O segundo termo, aliás, surgiu bem depois da criação do blog e até hoje não consigo entender se ele serve mais como rotulagem mercadológica para colocar pessoas em prateleiras e vende-las como um produto qualquer ou se é realmente sinônimo de um movimento social ou causa.

Ao largar a carrodependência em 2004, voltei a utilizar transporte coletivo, caminhar e também a pedalar pela cidade. Instantaneamente, uma nova realidade surgiu aos meus olhos: às vezes mais feia e dura, às vezes mais bonita e humana, mas certamente mais “real” do que aquela onde vivi durante os sete anos em que utilizei o carro para todos os meus deslocamentos.

Redescobri a bicicleta naquele ano e, a partir daí, ela começou a fazer cada vez mais parte da minha vida e do meu trabalho.

Ao mesmo tempo, descobri e comecei a participar da Bicicletada (Massa Crítica), um movimento internacional que se caracteriza essencialmente pelo encontro de cidadãos dispostos a criar espaços temporários, não-condicionados e não-comerciais de atuação direta na realidade. “A rua é de todos”, estampava a placa feita pelo Pedalero em uma Bicicletada que aconteceu na década passada.

Em muitas cidades do mundo, a Massa Crítica é o primeiro momento de visibilidade e “reação” da sociedade ao predomínio do automóvel.

A bicicleta é a antítese mais perfeita ao carro particular: é a melhor forma de utilizar a energia para o transporte individual terrestre, é bastante racional na utilização do espaço, desenvolve velocidades compatíveis com a segurança urbana, promove o bem estar e permite a integração com a cidade, características diametralmente opostas àquelas oferecidas pelo automóvel.

Em São Paulo, a Bicicletada cresceu ao longo dos anos. Deu visibilidade à causa da mobilidade urbana, colocou em pauta alternativas e permitiu a construção de um movimento que articula centenas de pessoas em ações reais, que não passam pela troca comercial trabalho-dinheiro, nem pela obediência cega a líderes ou opiniões pré-fabricadas.

A Bicicletada estimula o pensamento autônomo, a crítica livre de amarras, a transformação de indivíduos passivos em cidadãos ativos, inspirando fenômenos humanos que não se encaixam na lógica de produção-consumo-descarte que vem causando danos irreparáveis.

O simples encontro de cidadãos de diferentes classes sociais, crenças e orientações políticas no espaço público ganha caráter revolucionário em uma sociedade cada vez mais pasteurizada e segregada, onde as pessoas tendem a encontrar apenas seus “iguais” em espaços também iguais.

Participei de quase todas as bicicletadas desde setembro de 2004, colaborando com a redação e distribuição de panfletos, articulando ações diretas, divulgando relatos, fotos e vídeos dos encontros. Vi a massa crescer de 10 para 30, 50, 100, 150, 300 participantes a cada última sexta-feira do mês.

Pacientemente assisti a melhora da cobertura midiática sobre a mobilidade urbana, acompanhei a reprodução de iniciativas semelhantes em diversas cidades do Brasil, o surgimento de um número cada vez maior de blogs e trabalhos acadêmicos sobre o tema, participei de debates e fóruns e presenciei o nascimento de algumas (pra lá de tímidas) iniciativas institucionais de estímulo ao uso de bicicletas e redistribuição do espaço e dos recursos públicos.

No começo de 2009, algumas pessoas começaram a discutir a necessidade de criação de uma entidade que levasse essa efervescência a outras instâncias sociais. O objetivo era estabelecer um diálogo concreto e institucional com o poder público e com a sociedade, entes que muitas vezes não conseguem compreender a natureza horziontal e autônoma da Bicicletada, nem sequer o que significa usar a bicicleta, o transporte públicou ou caminhar a pé.

Em novembro daquele ano, depois de inúmeras reuniões, nascia a Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo.

Não participei de todas as conversas, mas na reta final fui praticamente compelido a aceitar o cargo de Diretor Geral da nova organização. Diziam à época que o meu trabalho e reputação junto aos ciclistas e órgãos públicos, a minha calma e paciência para o diálogo e a minha seriedade no debate coletivo eram elementos imprescindíveis e aglutinadores.

Confesso que as dúvidas e crises não foram poucas nem pequenas antes de aceitar o convite.

Por um lado, acredito que o amadurecimento de qualquer movimento ou causa passa pelo debate institucional com todas as esferas da sociedade. Por outro lado, algumas características do chamado “terceiro setor” e da democracia institucional são deploráveis, fazendo com que muitas instituições sirvam, na verdade, para frear e “enquadrar” as ações transformadoras e reivindicações dos cidadãos. ONGs e órgãos burocráticos tendem a transformar o genuíno e transformador em algo pasteurizado, repetitivo e pouco eficiente.

O Brasil ainda é um país marcado pela Lei de Gerson, com uma democracia precária e cronicamente paternalista. Nossa tradição institucional beira o ridículo pela falta de procedimentos e comportamentos decentes e que busquem o bem coletivo (e não a vantagem individual).

Essas características, somadas à dinâmica do capitalismo de última geração e ao subdesenvolvimento material transfere às organizações da sociedade civil uma dinâmica que deveria ficar restrita ao mercado. Não é raro que entidades da sociedade civil surjam a partir de demandas genuínas, com pessoas genuinamente engajadas e dispostas a transformar a realidade, mas se transformam em mais um meio de sobrevivência para seus “donos” e “funcionários”.

Nesta segunda década do século XXI, temos ainda o agravante da liquefação do mundo. Uma sociedade de pessoas que “curtem” coisas, mas não produzem nada, apenas reproduzem o que lhes chega através de melindrosas articulações publicitárias. Um fluido repetitivo e entediante constituído pela “eterna novidade”, pela falta de pensamento crítico, pela dificuldade de ler textos com mais de 3 parágrafos, assistir imagens com mais de 10 minutos ou escutar músicas com mais de 3 (se você chegou até aqui, parabéns, você é peça fundamental para a salvação do mundo).

O desafio de melhorar e humanizar nossas cidades é tão grande quanto o desafio de construir uma associação de ciclistas realmente atuante, democrática e independente. Nunca me furtei ao primeiro desafio, pois vejo e sinto que minha cidade está à beira do colapso e (ainda?) não optei pela fuga. Também não recusei a missão de construir a Ciclocidade, ciente de todas as dificuldades internas e externas que estavam pela frente.

Este blog não acabou, mas ficará mais adormecido que o costume. Minhas energias e foco estão, desde o ano passado, voltados para o trabalho na Ciclocidade, acreditando que falar de bicicleta por falar de bicicleta, sem trazer junto uma reflexão maior sobre a cidade e todas as suas variáveis, é praticamente inútil.

O desafio é grande, imenso, quase assustador. Mas também extremamente empolgante.

Agradeço a todos os leitores e amigos que fiz neste período, às pessoas que trouxeram novas e maravilhosas realidades. Lidar com as adversidades talvez seja a parte mais difícil da vida. Mas viver ainda é melhor que sonhar.

Thiago Benicchio, abril de 2011

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