arte: cc Paulo Ito
Em 1926, o engenheiro Saturnino de Brito apresentou à administração paulistana um plano de ocupação das margens do rio Tietê. Conhecedor da dinâmica dos rios e estudioso do Tietê, Brito recomendou a construção de um grande parque linear e a preservação de áreas permeáveis ao longo da várzea, que já começava a ser ocupada pelos habitantes da capital.
O plano de Saturnino de Brito baseava-se em um princípio bastante simples: rios tem períodos sazonais de cheias. Desde a antiguidade, rios como o Nilo, Tigre e Eufrates foram aproveitados pelos povos ribeirinhos para a agricultura e irrigação. Nenhum faraó foi estúpido o suficiente para construir uma pirâmide à beira do Nilo, pois sabia que ela seria destruída pela água no período de cheia.
O desenvolvimento da ciência consolidou ao longo dos séculos XIX e XX a falsa ideia de domínio absoluto da Natureza. Bastavam alguns cálculos, algumas estimativas e o emprego de tecnologia para que as forças naturais fossem subjugadas pela espécie que tinha como principal diferença das outras o polegar opositor, o telencéfalo altamente desenvolvido e um potencial destrutivo nunca visto entre as outras espécies.
A administração da cidade jamais colocou em prática o plano de Brito, substituído pelo Plano de Avenidas do também engenheiro Prestes Maia, que previa a construção de vias expressas e pontes sobre o rio. A época de Prestes Maia marcava a chegada agressiva da indústria automobilística no Brasil, que teve como consequências nas décadas seguintes o desaparecimento dos bondes, o espalhamento da cidade e a readequação do tecido urbano à dinâmica do fluxo motorizado.
Ao longo do século XX, a área de vazão das cheias nas margens do rio Tietê foi urbanizada, impermeabilizada e transformada em largas faixas de rolamento para veículos motorizados. A área que cumpria uma função de equilíbrio na mais importante bacia hídrica da região sudeste foi reduzida ao utilitarismo motorizado.
A cada tentativa humana de subjugar a Natureza, forças muito maiores do que a vã tecnologia davam o troco. Muitas vezes a resposta de Gaia não é imediata, já que o tempo histórico da readaptação da Natureza não é tão veloz quanto o das agressões humanas. Mas a única certeza é que a resposta da Natureza sempre virá. Seu mecanismo de funcionamento é complexo, possui uma série de inter-relações bastante sutis e, principalmente uma capacidade de ação muito maior do que pode imaginar o estúpido ser humano.
arte: R. Crumb
Tecnocratas almofadinhas e políticos com sede de poder geralmente não acreditam nestas “bobagens”. Tentam a todo custo racionalizar e adaptar ao seu interesse o que, no máximo, poderia ser compreendido e respeitado. Encontram dezenas de respostas, mostram milhares de números e apresentam dezenas de “compensações” para a destruição que pretendem causar. Tudo “bate” no raciocínio tecnocrata, todos os números “fecham” e com a ajuda de muita propaganda eles convencem as massas por A+B que conseguirão dominar a força da Natureza e trazer apenas benefícios depois de cada ação destrutiva.
A tecnociência agora veste-se de verde: depois da descoberta de que a maior vítima de todas as ações antrópicas sobre o planeta é o próprio Homem e sua principal criação, o Mercado, os tecnocratas incorporaram o discurso ecológico à racionalidade que só lhes serve para a perpetuação da insustentabilidade e para a manutenção de seu domínio sobre outros seres.
– “Destruiremos este pedaço aqui, mas vamos plantar milhares de árvores logo ali e tudo vai ficar bem”.
– “Vamos impermeabilizar estes 19 hectares, mas criaremos calçadas permeáveis e plantaremos milhares de árvores em toda a cidade e tudo vai ficar bem”
– “Desperdiçaremos recursos naturais em uma sociedade de ultra-consumo, mas já desenvolvemos técnicas de reciclagem para nos salvar e tudo vai ficar bem”
– “Destruiremos a atmosfera, aumentaremos o nível dos oceanos, mas criaremos um mercado de troca de poluição por dinheiro e tudo vai ficar bem”
A cheia de ontem no rio Tietê não foi a primeira nem será a última de sua história. Mas os tecnocratas almofadinhas e os políticos com sede de poder não se importam com isso. Pagam os melhores técnicos e porta-vozes para que estes demonstrem que uma “compensação ambiental” irá dominar a força da Natureza e impedir que a reação de Gaia atinja a população.
Faraós do antigo Egito, crianças de cinco anos, pescadores que vivem da própria pesca e qualquer ser humano que não tenha as mesmas ambições dos tecnocratas almofadinhas ou dos políticos com sede de poder conseguem entender que a impermebilização de 19 hectares na várzea do rio Tietê é um anacronismo sem tamanho, uma insanidade que nenhuma racionalidade científica poderá contornar, que nenhuma compensação ambiental poderá “compensar”.
A chuva de ontem realmente não foi comum. Também não foi inédita. O fato é que este tipo de “anormalidade” tem acontecido com cada vez mais frequência no planeta, exatamente como reação da Natureza a todas as ações “racionais” do homem para tentar dominá-la. Mas sempre teremos um tecnocrata de plantão para dizer que isso não tem nada a ver com a ação destrutiva do Homem e para explicar que “vai ficar tudo bem”.
Qualquer governo minimamente prudente e/ou realmente preocupado com o futuro de seus governados deveria buscar desde já alternativas para proteger a humanidade e a natureza destas “anormalidades cada vez mais frequentes”. É irresposnável e criminoso o governo que insiste no caminho oposto. É cínico e mentiroso o governo que reduz a complexidade de Gaia à racionalidade mercantilista do Carbono.
A ideia de que tudo pode ser racionalizado e comercializado (como se pretende fazer com os créditos de carbono) só interessa à sustentabilidade do Mercado, só interessa aos tecnocratas almofadinhas e aos políticos com sede de poder.
A falácia de que a impermeabilização de mais alguns quilômetros de margem do Tietê será compensada por promessas de plantio de árvores, de criação de um parque distante e até pela redução da emissão de Carbono é apenas uma falácia verde dos tecnocratas de plantão e dos políticos com sede de poder. Em primeiro lugar porque tais promessas geralmente não são cumpridas integralmente. Em segundo, porque esta racionalidade não tem nada a ver com o estabelecimento de uma relação equilibrada entre o homem e o ambiente.
arte: R. Crumb
A grande ironia da resposta de Gaia é que as chuvas de ontem que fizeram o rio Tietê transbordar é que ela veio antes mesmo da impermeabilização proposta pelas seis pistas de asfalto da “Nova” Marginal estarem prontas, talvez uma tentativa de mostrar que ainda é possível mudar o caminho escolhido. Infelizmente, tecnocratas almofadinhas e políticos com sede de poder vão afirmar que tudo isso é “bobagem”, que suas técnicas, números e promessas vão “deixar tudo bem”.
PS: Algumas entidades da capital entraram com uma ação na Justiça pedindo a interrupção das obras da “Nova” Marginal. Uma moção de repúdio à obra e a favor das alternativas está disponível na internet e pode ser lida e assinada neste link.
Clipping de notícias sobre a “Nova” Marginal, incluindo a cheia de ontem
Textos, artigos e vídeos publicados anteriormente sobre a Nova Marginal
vídeo vozes do clima sobre mudanças climáticas, enchentes e carros nas cidades
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