Em poucos dias a cultura do individualismo e da segregação será homenageada em São Paulo. Os órgãos oficiais e a mídia corporativa não divulgam a data certa, mas a inauguração da ponte jornalista Octavio Frias, símbolo máximo da São Paulo do automóvel, deve acontecer em 10 de maio.
O mistério em relação à data talvez seja compreensível. O “Estilingão” não é apenas uma ponte, é um monumento. Talvez o maior símbolo da São Paulo higienista, especuladora, corrupta e voltada ao transporte individual.
É tudo tão explícito e cravado no território, que talvez seja melhor não noticiar.
O estilingão custou R$233 milhões. Dinheiro suficiente para construir 1000 quilômetros de ciclovias em São Paulo ou então para fazer a ligação por trilhos entre o aeroporto de Congonhas e o metrô. Também poderia ser usado para manter faixas de pedestre pintadas em todas as esquinas da capital durante uma década, construir 100 quilômetros de corredores de ônibus ou muitas praças.
O Estilingão servirá de ligação entre a Marginal Pinheiros e a avenida Águas Espraidas. Apenas motos e carros poderão usar a ponte.
Em 2003 a Águas Espraiadas mudou de nome e passou a se chamar “Jornalista” Roberto Marinho. Uma homenagem ao Cidadão Kane das telecomunicações brasileiras.
Em outubro de 2004, a avenida foi rebatizada pela população para Vladimir Herzog, jornalista sem aspas, que foi morto nos porões da ditadura militar apoiada pelas empresas de Marinho.
A avenida Roberto Marinho faz parte da ligação viária entre o Morumbi e o centro da cidade.
Trata-se de um mega-projeto urbanístico-financeiro, implantado em parceria por especuladores imobiliários e poder público, com o objetivo de transferir o coração do capitalismo brasileiro para as margens do rio Pinheiros (e ganhar muito dinheiro com isso).
O território rasgado pela avenida Águas Espraiadas era, até o final da década de 80, uma região residencial que misturava moradias de classe média com favelas. Muito longe “da cidade” para despertar algum interesse das construtoras.
A avenida foi inaugurada em 1996 por Paulo Maluf e custou R$600 milhões aos cofres públicos. A Águas Espraiadas era, na verdade, parte do complexo viário que incluiu a extensão da avenida Faria Lima, os túneis Ayrton Senna e Tribunal de Justiça e algumas passagens subterrâneas e viadutos por onde só passam carros e motos.
A construção dos túneis e avenidas foi marcada por uma enxurrada de denúncias de superfaturamento. Até hoje ninguém foi condenado, afinal a notícia “fulano condenado por superfaturamento no túnel Tribunal de Justiça”, como diria um colunista do jornal dos Frias, seria piada pronta.
Na Águas Espraiadas de hoje, lojas de carros, postos de gasolina, lanchonetes drive-through, vazios urbanos e algumas obras de condomínios de alto padrão. Trânsito? Nenhum. Ciclovias, calçadas decentes ou corredores de ônibus? Também não.
O Estilingão fincou suas estacas em uma praça (a José Anthero Guedes), que já era dividida ao meio pela avenida Luiz Carlos Berrini. Não existem faixas de pedestres ligando as duas partes da praça, muito menos bancos (espécie rara de mobiliário urbano em São Paulo).
À esquerda da praça, o quilombo remanescente das estripulias de Maluf, Marinho e Cia: a favela Jardim Edith, construída em 1973 e hoje esmagada entre os arranha-céus de vidro e a nova ponte.
As 450 famílias que moram no quilombo urbano já sabem que o futuro é cinza como a ponte. Substituindo o termo “especulação” por “revitalização”, “reurbanização” ou “readequação”, o poder público já declarou: vão ter que sair.
Pelas moradias, construídas em área pertencente ao DER (ironicamente o Departamento Estadual de Estradas de Rodagem), a prefeitura oferece entre R$ 5 mil e R$ 8 mil para cada família. Talvez fosse um valor decente em 1973, quando os primeiros barracos foram construídos na região desabitada. 35 anos depois, é um insulto.
À direita da ponte, mais uma loja de carros.
Do outro lado da rua, o World Trade Center paulistano.
E na outra esquina, o novo prédio da rede Globo.
A empresa do Dr. Marinho foi muito mais do que uma simples beneficiária direta de todo o processo especulativo-urbanístico acontecido na região.
A vênus platinada não só comprou o terreno a preço de banana, como colocou o Estado para trabalhar a seu favor. Ganhou de presente uma avenida com o nome de seu falecido dono e um viaduto com o nome de um ex-diretor.
Da avenida Roberto Marinho sai o viaduto José Bonifácio Nogueira, que serve de acesso à pista Interlagos-USP da Marginal Pinheiros.
Pelo viaduto, como na nova ponte, não passam ônibus.
O Estilingão atravessa o rio, ligando a avenida Roberto Marinho à pista USP-Interlagos da marginal.
Como megalomania tem limites, o poder público resolveu abrir mão de prestar outra homenagem à Rede Globo e a ponte, que também se chamaria Roberto Marinho, virou Octavio Frias – outro patriarca da oligarquia midiática brasileira.
Sorte, pois o formato da ponte poderia sugerir outra homenagem: Ponte Xuxa Meneguel.
Além do mais, Antônio Carlos Magalhães, até onde se tem notícia, era o único que costumava virar nome de obra em vida (a cidade de Salvador tem uma avenida ACM e pelo interior do Estado, centenas de escolas, ruas e pontes se chamam “painho”).
Aliás, ACM foi ministro das comunicações e um dos patronos do império Globo. Durante o governo Sarney, distribuiu centenas de concessões públicas para a retransmissão das emissoras da Rede Globo à políticos, amigos, familiares e oligarcas locais.
Como coincidência pouca é bobagem, a filha de ACM, Tereza, é casada com ninguém mais ninguém menos que o dono da construtora responsável pela obra da Ponte Estaiada, a OAS.
Curioso notar que a empresa do Dr. Marinho, ao falar sobre o superfaturamento nas obras de Maluf, segue usando o nome Águas Espraiadas (e não Roberto Marinho).
Mas não é só a OAS, a família de ACM e a Globo que estão lucrando com o “boom imobiliário” na região. Outra meia dúzia de clientes da vizinha Daslu está rindo à toa com uma das mais lucrativas parcerias público-priavado que a cidade já assistiu.
E as meninas da foto, que moram bem longe dali, também não têm do que reclamar.
Com a proibição de anúncios pela lei Cidade Limpa, uma nova e dignificante profissão surgiu em São Paulo: segurador de placa (ou bandeira) de imóvel.
Por R$35,00 R$25,00 diários (com direito à água grátis), qualquer um pode passar o dia de pé, respirando poluição e anunciando a prosperidade do setor imobiliário.
E se não gastarem o salário com futilidades na Daslu, quem sabe elas conseguem comprar um apartamento com nome em inglês, bem perto do local de trabalho e com vista para o novo cartão-postal da cidade.
Antes mesmo da inauguração oficial, metade da praça José Anthero Guedes foi ocupada por um evento promocional, realizado pela empresa que fará a iluminação da ponte. Festa privada em espaço público, com direito até a segurança pública.
Na beira do esgoto, a elite paulistana se divertiu, ficou por dentro das novas tendências de consumo, fez negócios e pode até assistir a shows de gente famosa.
Mais uma bolha temporária para entreter a “minoria branca”.
Do outro lado da rua, a realidade parece mais complexa.
A imagem de fundo não combina com a placa da rua.
Imagina se alguém repara e começa a chamar o local de “favela Roberto Marinho”? Não pega bem, é melhor limpar, mandar “essa gente” comprar casa em outro lugar com os 8 mil reais…
… e depois a gente chama eles de novo, paga R$ 25 por dia e eles vêm fazer propaganda dos nossos empreendimentos imobiliários, assistem a nossa tevê, consomem nossos produtos.
Nos fundos da Favela Roberto Marinho, outra praça. O mato alto mostra que a praça Arlindo Rossi ainda não entrou na rota dos especuladores, que talvez tentassem incorporá-la a algum “condomínio-parque”.
A praça Arlindo Rossi é freqüentada por moradores da favela e das casas de classe média baixa que integram o Quilombo Vladimir Herzog.
De cima do brinquedo, as crianças talvez nem reparem no novo cartão-postal da sociedade do automóvel, mas sim fiquem pensando que a futura casa de seus pais será lá longe, perto de onde o Sol se põe.
“Porque aqui, meu filho, é lugar de gente bacana, igual àqueles que a gente vê na novela andando com um carrão por cima da ponte”.
O custo de uma ponte estaiada
Parabéns São Paulo por mais um monumento ao congestionamento e a segregação. Seja bem vindo “Estilingão”!!!
PS: Ciclistas inauguram cartão posta com piquenique em São Paulo
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