Me engana que eu gosto


(reprodução: recorte de jornal com manchete sincera)

Quem manda em São Paulo é o trânsito, ou melhor, aqueles 30% de cidadãos que possuem automóveis.

Para esta minoria é dirigida toda a atenção do poder público, com a construção de viadutos, fechamento de calçadões, criação de garagens, recapeamento de ruas, ampliação de estradas, transformação de praças em estacionamentos (a Charles Miller, por exemplo) e alguns milhões de reais por ano para gerenciar o caos.

Para esta minoria está voltada a mídia corporativa, que propagandeia os planos e factóides que prometem aliviar o caos (como a ampliação do número de pistas das marginais ou as novas formas de rodízio) e dá espaço de sobra para as reclamações dos motoristas (nas seções de cartas ou em matérias no caderno de cidades).

Para esta minoria está voltada a atenção dos especuladores, que espalham a cidade para longe do centro (onde o acesso só é possível por automóvel), construindo fortalezas onde o número de vagas para carros é maior do que o número de dormitórios e obrigando o poder público a levar infra estrutura até áreas distantes.

Para esta minoria está voltada a atenção do comércio, que criou o fenômeno tipicamente paulistano dos “manobristas no local”, para atender os paranóicos que tem medo de andar algumas quadras no espaço público ou usar transporte coletivo até o seu destino.


(reprodução: recorte de jornal)

Os paliativos para aliviar o caos beiram o ridículo. Fala-se de um problema (o trânsito), mas não se discute a causa (o excesso de veículos).

A mais recente iniciativa para tapear os paulistanos e permitir que o lobby automobilístico continue a desfrutar das benesses que há mais de 50 anos permitem que a cidade seja o paraíso da destruição motorizada é uma “ação de marketing” de uma empresa de seguros automobilísticos.

A tal empresa, em parceria com um grupo de notícias, conseguiu se utilizar de uma concessão pública para criar uma estação de rádio destinada à minoria da população. O “serviço” prestado não aborda as dificuldades de quem anda de ônibus, bicicleta ou à pé, apenas informa aos ouvintes angustiados e solitários dentro de suas bolhas móveis as “alternativas para (tentar) escapar do trânsito”.

A programação da rádio consiste essencialmente em dicas de possíveis rotas alternativas prestadas por reporteres e ouvintes que ligam de seus celulares… Opa, mas utilizar telefone celular enquanto dirige não é uma infração de trânsito que aumenta exponencialmente a chance de “acidentes” graves? Bobagem… O mais importante é continuar a enganar os paulistanos por mais alguns anos, para que eles continuem acreditando que é possível utilizar o carro para escapar do trânsito causado pelo excesso de carros.

Na última segunda-feira, dia de estréia da rádio, os dois principais jornais do estado tiveram a capa de todos os seus cadernos dominada pelos anúncios da nova estação. Os criativos slogans eram direcionados ao tema de cada caderno:
– Ilustrada e no Caderno 2 (cadernos de cultura): “porque chegar ao teatro não precisa ser um drama”
– Dinheiro e Economia: “porque tempo perdido no trânsito também é dinheiro”
– Cotidiano e Metrópole: “porque o trânsito muda todo dia”
– Esportes (apenas Estado): “para o trânsito não acabar com seu espírito esportivo”

E depois nos perguntamos porque a mídia corporativa, com raras e esporádicas excessões, boicota as iniciativas de contestação à sociedade do automóvel e não consegue propor uma discussão óbvia: o uso excessivo do carro (e não o trânsito) é um dos principais problemas de São Paulo.

A publicidade na capa de todos os cadernos certamente bancou a tiragem dos dois jornais naquele dia, bem como os cadernos publicitários especiais das montadoras, encartados todo sábado nos jornais, banca a tiragem da semana.

Se você quer sofrer um pouco com a angústia alheia, pode ouvir a rádio pela internet.

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