Liberdade é não ter carro pra estacionar

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O anúncio acima ocupava duas páginas em edição recente de uma revista destinada a (e consumida por) jovens de classe média. Temática, a revista abordava naquela edição a “liberdade”.

Durante os cinco anos que fui motorista, sonhava com a “liberdade” de estacionar meu veículo sem ter que pagar por isso, sonhava com a “liberdade” de não ter nenhum flanelinha para me pedir ou extorquir dinheiro… Acreditava (como acredita a maior parte dos motoristas) que eu tinha o direito de estacionar minha propriedade privada em espaço público sem pagar um tostão por isso. Talvez seja esta a “liberdade” proposta pelo ciborgue-flanelinha do anúncio.

No mundo do carro, o flanelinha surgiu como um auxiliar de estacionamento e protetor informal do veículo contra assaltantes.

Há pouco mais de 15 anos a cidade ainda se movia, o estacionamento nas ruas era farto, o roubo de toca-fitas era uma novidade e a Vila Madalena ainda era um bairro de “hippies”. Nesta época guardadores de carro só eram encontrados em locais de grande movimento, shows ou eventos especiais. Ninguém admitia pagar para estacionar em uma rua qualquer em plena tarde de uma terça-feira.

De lá pra cá, o número de carros aumentou exponencialmente e a cidade se transformou em um grande e concorrido estacionamento público. Para se ter uma idéia, de 1976 até 2004, a população cresceu 23%, o sistema viário foi ampliado em 25% e o número de carros cresceu 280%.

Ao longo deste período a desigualdade social pouco diminuiu e, por necessidade ou má intenção, as ruas da cidade foram completamente loteadas e os guardadores de carro se tornaram uma realidade da qual nenhum motorista escapa.

A ilusão vendida pelo anúncio chega a ser infantil: o carro com sensor de estacionamento proporcionaria liberdade ao motorista ao desmontar o mito fundador do flanelinha: aquele cidadão necessitado que aborda motoristas dizendo “pode vir, pode vir…” e depois pede “um cafezinho” pela ajuda.

Talvez as outras seis páginas ocupadas por publicidade automotiva explícita (aquela que não se esconde em guias de consumo ou matérias “jornalísticas”) também digam algo sobre a “liberdade” em questão.

O mundo do automóvel ficou em segundo lugar entre as ilusões e produtos anunciados na revista. Em primeiro lugar, grifes de roupa e acessórios, ocupando 18 páginas. Empatados em terceiro lugar, com quatro páginas cada, estavam empresas de telefonia celular, bebidas alcoólicas e outros veículos de mídia.

Das 154 páginas da revista, 47 eram ocupadas por anúncios, ou seja, quase 1/3 da publicação.

Os anúncios de carro movimentam de tal forma a indústria de mídia que a agência publicitária acima, ao propagandear sua participação em um prêmio do setor, não teve dúvida: escreveu o nome de um cliente automobilístico em letras maiores do que a sua própria marca.

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