Fim de ano sem carro


(fotos: gira-luddista)

Por alguns instantes o motorista vê realizado o sonho de pilotar um carro sozinho na auto-estrada, indo em direção ao horizonte. A imagem idílica do anúncio publicitário já não causa mais a angústia do cotidiano imóvel na cidade, a angústia de não sair do lugar, de não poder aproveitar a máquina que lhe foi vendida como panacéia para a mobilidade e como símbolo da velocidade instantanea.

A utilidade do automóvel é inegável. Em viagens podemos percorrer largas distâncias, escolher quando e onde queremos parar, levar mais bagagem e até facilitar os deslocamentos nos locais visitados.

No Brasil das ferrovias destruídas pelo modelo rodovigarista predatório e corrupto, o carro ainda é o rei da estrada. A gestão privada das linhas rodoviárias de transporte coletivo é tão nebulosa quanto as concessões de rádio e televisão no Brasil: o cartel impera, não há concorrência, a qualidade é baixa e em muitos pontos do país a viagem de ônibus ainda é algo terrível e extremamente cansativo.

Não era o meu caso: Parati, no litoral fluminense, tem ônibus saindo regularmente de São Paulo. Mas há duas semanas da data pretendida para a viagem, já não era possível encontrar passagem em horário adequado (precisava chegar durante o dia ou no final da madrugada, a tempo de pegar um barco até o destino final). Fui de carro, até porque o destino das férias era uma praia sem carros, a data era de baixo movimento nas estradas e eu ainda teria companhia para dividir os gastos e tonar a viagem mais agradável.

Rodovia Ayrton Senna, que integra a ligação rodoviária entre a capital e o litoral norte (composta também pelas rodovias Caravalho Pinto, Tamoios e Oswaldo Cruz). Por ser uma das melhores do país, a Ayrton Senna é também uma das poucas com acostamento decente e adequado ao tráfego de bicicletas.

A Ayrton Senna foi inaugurada por ninguém menos que Paulo Maluf no sugestivo Primeiro de Maio de 1982, com o nome de “Rodovia dos Trabalhadores”. Foi renomeada em 1994, durante a gestão do governador Fleury, logo após a morte do piloto de fórmula 1 (ironicamente) em um “acidente” automobilístico.

A nova ligação rodoviária serviria para desafogar o trânsito da via Dutra, já saturado e perigoso para os banhistas paulistanos que começavam a descobrir (e especular n)o litoral norte.

O lobby automobilístico vigente desde a era JK e a conseqüente destruição da malha ferroviária fez com que o transporte de pessoas e mercadorias entre as duas maiores cidades do país passasse a ser feito apenas por ônibus, caminhões e automóveis. Hoje, estima-se que 52% do PIB brasileiro circule pela Via Dutra.

Aqui o trabalhador deixa R$7,80 depois de percorrer 48km na Ayrton Senna.

Via Dutra, perto de Taubaté. A falta de acostamento em alguns trechos e o trânsito pesado de caminhões e ônibus não impedem o fluxo de ciclistas.

Esta não é a Praça do Ciclista de Taubaté, mas sim uma homenagem aos primeiros “abridores de estradas” de São Paulo. De arma em punho, Bandeirantes como o da estátua acima mataram milhares de índios, escravizaram outros tantos, exploraram negros, roubaram ouro, destruiram florestas e assim abriram espaço para o “desenvolvimento” paulista.

O estado que se orgulha de ter “as melhores rodovias do país” é o mesmo que não possui nenhuma ligação ferroviária de passageiros para litoral nem para o interior, apesar dos trilhos ainda permanecerem instalados em diversos trechos (como é o caso da ligação entre São Paulo e Campinas).

Beneficiam-se do lobby rodovigarista que sufocou o trem as empreiteiras, os governos, as transportadoras, os policiais rodoviários corruptos e, claro, as montadoras de automóveis, caminhões e ônibus. Pagam a conta os milhares de mortos e feridos em “acidentes”, o sistema de saúde pública, o meio ambiente e o trabalhador comum, escravo das máfias automobilistas e do alto custo econômico, social e ambiental embutido nesta forma de transporte.

O desenvolvimento na porta de casa. O modelo que privilegia as rodovias criou incongruências urbanas difíceis de serem revertidas. Se antes a cidade se organizava ao redor da estação de trem, hoje as rodovias atravessam bairros e cidades tornando a vida perigosa e barulhenta para quem mora na região. A convivência de tráfego urbano com veículos em viagens longas
é mais uma grande estupidez deste modelo.

Não são poucas nem raras as rodovias que atravessam regiões centrais e cidades inteiras (basta citar o exemplo de São Paulo, com as marginais, e Rio de Janeiro, com a Avenida Brasil). Uma rodovia passando pelo meio de uma cidade não é apenas um problema para os moradores destas regiões, mas também representa a degradação do próprio funcionamento da rodovia, obrigando o motorista a reduzir sensivelmente a velocidade e atrasando a viagem.

No litoral norte de São Paulo, um bom exemplo dessa destruição é a Rio-Santos. Construída a poucos metros do mar, a rodovia celebrizada por Roberto Carlos corta ao meio praias e bairros inteiros nas cidades de Caraguatatuba e Ubatuba, obrigando os moradores a realizar diariamente perigosas travessias para chegar ao outro lado da rua. Para evitar derramamento de sangue em níveis maiores, todo o trecho urbano está forrado de desagradáveis lombadas e redutores de velocidade.

As bicicletas de Taubaté

Ubatuba


Parati

Pouso da Cajaíba

Transporte coletivo

Pedestres

31 de dezembro

Bicicleta do mar

Crianças brincando com suas bicicletas

Davi

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