A cidade está tranqüila

Depois de três semanas em Portland e São Francisco e mais de 20 horas entre aeroportos e aviões, cheguei em Guarulhos na manhã de uma sexta-feira.

O primeiro contato com a realidade é o fato do aeroporto mais importante da América do Sul não ter uma ligação por trilhos com a cidade (apesar das linhas pontilhadas já estarem no mapa há duas eleições para governador).

Quem chega à capital paulista vindo de outro país tem duas opções: táxis que cobram entre R$80,00 e R$150,00 ou um serviço de ônibus que leva os passageiros até estações do metrô, por R$28,00. Ambos estão sujeitos às intemperes da cidade mais congestionada da América do Sul e, dificilmente, o percurso até o centro da capital leva menos de uma hora.

Geralmente venho de ônibus. Desta vez, além de cansado, estava com medo do trânsito: na ida levei 2h30 até o aeroporto. Somadas às 20 e tantas horas de vôo, estes 150 minutos seriam intermináveis. Optei pelo extorsivo táxi e, para minha surpresa, levei pouco mais de 30 minutos. Ruas livres, parecia domingo.

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Poucas horas depois de chegar, saí para almoçar com um amigo.

“O trânsito está bom mesmo… por isso está mais perigoso”.

Aquela semana era a primeira em que vigorava a criminalização dos caminhões, anunciada como panacéia para o trânsito há alguns meses e implantada no momento mais oportuno do calendário eleitoral: junto com as férias escolares.

A legitimação da idéia de que são os caminhões os grandes vilões do trânsito contou com a importante ajuda de dezenas de matérias prévias na mídia corporativa e, principalmente, dos universitários motorizados e das mães e pais que levam os filhos para a escola de fevereiro a junho e de agosto a dezembro.

Para o Homer tele-comandado, que a cada 2 anos se transforma em cidadão apertando botões em uma urna eletrônica, a perceptível melhora do trânsito é conseqüência direta da proibição dos caminhões, não do recesso estudantil (ou ao menos dos dois fatores combinados). “Fechemos as escolas”, diria o mais fanático.

Com o trânsito fluindo melhor, as máquinas correm mais. Para quem anda de bicicleta, isso significa maior risco de algum “acidente” grave.

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Se os dias estavam mais velozes e furiosos, as noites prometiam ser mais calmas. A outra notícia “em pauta” na cidade era a chamada “Lei Seca”…

Confesso que fiquei com a pulga atrás da orelha com a questão semântica.

Como assim “Lei Seca”, se menos de 30% da população anda de carro? Como assim “Lei Seca”, se ninguém está proibido de beber, mas sim de combinar álcool e direção?

Se as inúmeras matérias sobre o “problema dos caminhões” serviram para legitimar as restrições aos veículos de carga, o que estariam buscando os manipuladores de incoscientes com a “alcaponização” do termo ao abordar a combinação álcool+direção?

Seria uma tentativa de mobilizar todo mundo que bebe para defender o “direito” dos frequentadores das Vilas Madalenas e Olímpias de tomar porres e bater seus carros nas madrugadas selvagens de sextas e sábados? Ou será que os produtores e consumidores da mídia corporativa fazem parte do mesmo pequeno mundinho “paulistano-motorizado-do-centro-expandido” que nem perceberam o desvio?

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Como era dia, resolvi seguir o balanço acima, deixei a bicicleta de lado e saí para uma caminhada. O processo de readaptação passou por lembrar meus instintos que em São Paulo o pedestre jamais tem a preferência.

Nas faixas de pedestre que insistem em permanecer pintadas, mesmo depois do brutal desleixo com que foram tratadas nos últimos anos, a travesssia é sempre um enfrentamento: fixar o olhar no pára-brisa muitas vezes escurecido pela paranóia e dizer “eu atravesso, você para!” é o exercício cotidiano que nos esquecemos depois de passar algum tempo em lugares onde o óbvio é óbvio.

O mesmo raciocínio é válido para as dezenas de garagens que ostentam placas dizendo “cuidado, veículos”. É preciso “lembrar” os motoristas a cada 100 ou 200 metros que a calçada é um espaço de fluxo de pedestres que pode conter rampas de acesso a garagens, e não o contrário.

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Depois de alguns combates visuais que passavam em slow motion, minha atenção se voltou para uma gritaria em uma esquina da rua Agusuta. Me aproximei e vi um homem com uma barra de ferro atravessando a rua e correndo atrás de outro.

A turma do deixa-disso interveio e segurou o homem com a barra de ferro. O outro continuou xingando e chamando para a briga. Alguns minutos e muitos insultos depois, o homem com a barra de ferro é afastado.

A potencial vítima da marretada era um pedestre, que reclamou e deu uns tapas no ônibus parado em cima da faixa. Ele assume que falou alguns palavrões, mas a barra de ferro me pareceu uma reação desproporcional.

Submetido à rotina insana de dirigir um ônibus em uma cidade congestionada por carros, ao cumprimento de critérios de produtividade para garantir o lucro do dono da empresa e a todas as outras variáveis sócio-econômicas, o motorista do ônibus simplesmente decidiu que iria rachar a cabeça daquele pedestre que reclamava.

Infelizmente o grau de insanidade no trânsito continua muito alto e os casos de fúria no trânsito são cada vez mais freqüentes, atingindo pessoas das classes A a Z.

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Aplicar analgésico proibindo os caminhões ou receitar a suspensão do álcool não terá muito efeito no combate à doença deste paciente chamado Cidade.

A dependência crônica do automóvel continua sendo uma patologia mais misteriosa que o câncer.

Estudiosos e médicos de plantão nos gabinetes seguem distante das causas, obscurecidos por interesses econômicos muito maiores do que os da indústria farmacêutica e até hoje imunes a qualquer questionamento.

Na audiência televisiva de domingo à noite, que se prepara para enfrentar a “batalha do trânsito” na segunda-feira, a doença provoca reações como medo e euforia, servindo para a inoculação de desejos de consumo e panacéias individuais para problemas coletivos, tendo como efeitos colaterais a alimentação de máfias e a desintegração social.

A Cidade segue em coma.

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