Pó e puta pode. Pamonha, não pode.

Sábado, 4:20 da manhã, rua Augusta, São Paulo.

O “rapa”noturno mobiliza quatro viaturas da Guarda Civil, um caminhão, duas kombis e quase três dezenas de funcionários públicos. Alguns cumprem a tarefa com constrangimento, escondem o rosto e se movem de cabeça baixa recolhendo o material como se estivessem pedindo desculpas pela missão que têm que cumprir.

O perigoso vendedor de milho, cural e pamonha é pego de surpresa.

Tem sua mercadoria confiscada e o seu carrinho apreendido.

Alguns passantes se revoltam: “rapa do caralho”, “falta do que fazer”…

O vendedor não reage, a não ser por algumas palavras em tom mais elevado e alguns milhos atirados no chão em protesto.

O ambulante não pertence à mesma casta dos frequentadores dos bares e casas noturnas da região. Sabe que palavras mais graves ou protestos mais exacerbados terminariam, para ele, em delegacia, alguns tabefes e o enquadramento em algum artigo genérico como “desacato” ou “resistência à prisão”.

Os agentes da guarda que tem como única função o enxotamento de moradores de rua e a repressão ao comércio ambulante (inclusive de de milho, pipoca, toucas, cachecóis e outros produtos altamente perigosos) também não abusam da truculência. Sabem que estão em região onde circulam pessoas da casta superior, algumas desconfiadas de que existem problemas muito mais graves na cidade do que a venda de milho na porta de uma casa noturna.

“Cada vírgula do discurso do paulistano é previsível, apesar de suas versões variadas de pontos de partida e chegada”. *

O status quo paulistano associa todo o comércio ambulante à máfias chinesas, trabalho escravo, pirataria e criminosos de alta patente. Não enxerga ou prefere não enxergar matizes. Não vê a diferença entre o vendedor de milho e o mafioso chinês amigo e  suposto parceiro do ex-Secretário Nacional de Justiça.

Ou melhor: vê difereça sim e prefere o rapa noturno que leva o carrinho do vendedor de milho, o enxotamento violento de moradores de rua e todas as peneiras que tapam o sol da desiguldade à prisão dos grandes traficantes de drogas, dos mafiosos da alta sociedade, do combate ao crime e à corrupção que andam de mãos dadas com o poder.

Mais importante é limpar o caminho e higienizar a cidade para que a chamada a alta sociedade possa andar “tranquila” dentro de seus SUVs com vidros escuros, morar nas “torres” de alto padrão isoladas da realidade e fazer suas “compras” em lojas, puteiros e traficantes de luxo.

Em tempo: esta reflexão não passa pelo julgamento moral das drogas, da prostituição ou do luxo, mas sim pela análise da hipocrisia míope e esquizofrênica de uma cidade brutalmente desigual, que acha normal gastar recursos públicos com a apreensão de um carrinho de milho às 4:20 da manhã.

* Frase do texto “Viradas e Paradas”, de Gisella Hiche, uma crônica sobre a era da higienização paulistana

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