Os caras-de-pau e Kafka sobre quatro rodas

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Com a reforma das calçadas da avenida Paulista, todo o trecho em obras está proibido para embarque, desembarque e estacionamento de veículos, sinalizado pela famosa placa do “E” cortado duas vezes (a que aparece acima do carro parado).

No quarteirão entre as ruas Bela Cintra e Haddock Lobo, o restaurante com o sugestivo nome de “America” (sic) não está nem aí para a proibição: resolveu deliberadamente desrespeitar os pedestres.

Para “bem atender” os seus clientes motorizados, manteve funcionando o serviço de “valet park” na área proibida. Repare nos dois senhores de calças pretas que aparecem na foto.

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Antes da obra na Paulista, a prática do restaurante não era muito diferente: em horários de grande movimento, as calçadas públicas serviam para o estacionamento privado (como mostra a foto acima, tirada em outubro de 2006). “Para não atrapalhar o trânsito”.

Em época de buracos e tapumes, a cara-de-pau continua reinando. E não falamos aqui de um boteco de esquina: trata-se de um restaurante que cobra mais de 30 reais por um prato de macarrão.

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Munido do “espírito cidadão”, resolvi denunciar o abuso.

Visitando o site da Prefeitura, encontrei o Serviço de Atendimento ao Cidadão. Que maravilha a democracia virtual, não é mesmo? Com um simples clique do mouse, podemos participar dos rumos da nossa cidade.

Passo número 1: escolher o tema da solicitação. Utilizo o campo de busca, procuro por “manobrista” e “valet park”… Nada. No lugar da busca, tento uma lista de assuntos pré-definidos: iluminação, IPTU, moradores de rua….

Hmm, “CET – Estacionamento”, devo estar no caminho certo. Com um clique, o site me leva para outra tela, onde devo escolher um subtema.

Além da “solicitação de vagas de estacionamento regulamentado”, todas as outras opções se referem à “dificuldade de estacionamento” (para deficientes físicos, caminhões, embarque e desembarque”. Trocando em miúdos, todas as opções referentes ao “estacionamento” tratam de problemas enfrentados pelos motoristas.

Volto à primeira tela. Mais uma busca entre os temas: “Passeio público”, deve ser este. Buracos, piso escorregadio, solicitação de reformas… Nada…

“Obstáculo dificultando acessibilidade”. Bingo! Aquele carro estava dificultando a acessibilidade, deve ser este o subtema.

Que nada: entre as opções de “obstáculos”, apenas bancas de jornal, coletores de lixo e camelôs (que depois do “rapa” são substituídos por motos da guarda municipal). Nada de veículos sobre calçadas, “puxadinhos” que invadem o passeio público ou guarda-sóis de valet park que obstruem a passagem de pedestres.

Mais uma olhada nos temas e encontro a palavra mágica: “Trânsito”. Na segunda tela, a descrição parece perfeita: “reserva de vaga indevida”. Ora, o valet park do tal restaurante estava reservando uma vaga de forma indevida. Deve ser isso… Feliz e contente, cadastro minha denúncia.

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Ao final, a mensagem de confirmação: “Solicitação encaminhada a(o) Departamento de Limpeza Urbana”!

Departamento de Limpeza Urbana?! Reserva de vaga indevida?! Ahhh, entendi: no quesito trânsito, “reservar uma vaga indevidamente” significa estacionar uma caçamba de entulho em uma vaga de carro.

Volto ao começo e faço mais uma minuciosa busca entre temas e subtemas. Cadastro outra solicitação em “CET / Circulação viária”, escolhendo como subtema o “Livre estacionamento de veículos prejudicando a circulação”.

Afinal, como sabemos, a CET é o órgão responsável pela circulação de todos os habitantes de São Paulo. E como os automóveis estacionados em frente ao restaurante estavam impedindo a livre circulação de pedestres, tenho certeza que o problema será resolvido. Ou será que o livre estacionamento de veículos só prejudica a circulação de outros veículos? Kafka explica…

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